O inconsciente e o Outro
- marcioheber5
- 3 de fev. de 2022
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Atualizado: 4 de fev. de 2022
Recorrendo às bases da psicanálise com o intuito de fazer breves apontamentos sobre o inconsciente em Freud, notamos que na Carta 52 temos uma primeira tentativa de estabelecer a ideia de um aparelho psíquico. Neste, o que temos são retranscrições, traços e sinais nos quais a energia flui e permite que ocorram as comunicações. Na borda deste aparelho, em seu primeiro registro, temos a Percepção (W) que não guarda nenhum traço do que aconteceu e que se liga diretamente com a consciência (mutuamente exclusiva da memória). Em seguida temos o registro das Indicações da percepção (Wz), onde ocorrem indicações ao organismo de que alguma coisa aconteceu, no entanto, ainda assim são inacessíveis à memória – além disso, funcionam por simultaneidade. O Inconsciente (Ub) como terceiro registro é o local de depósito das lembranças conceituais/representação de coisa (essencialmente visuais), também inacessível à consciência e regido pelos mecanismos de deslocamento e condensação. Finalmente, temos a Pré-consciência que é composta por representações de palavra (essencialmente acústicas) e que, ao ligarem-se adequadamente com uma lembrança conceitual, tornam-se consciente. Caso ocorra uma falha nesta ligação, na tradução, aí temos o recalque – ou seja, a impossibilidade de ligar a Lembrança conceitual à Representação Verbal correspondente devido ao sentimento de desprazer que seria causado caso de fato fosse realizada a tradução.
Ou seja, em Freud temos a proposição de inconsciente como uma instância que armazena representações e que é inacessível à consciência. O acesso ao material inconsciente se dá a partir de catexias que fazem a ligação entre a representação de coisa e representação de palavra adequada e podem se apresentar nas formas, por exemplo, de sonhos, atos falhos ou chistes. Podemos citar o próprio Freud para acrescentar, ainda, que o inconsciente é proveniente da infância e que no chiste (uma das formações do inconsciente) o que ocorre é um percurso do pensamento que busca fazer uma articulação com as palavras (ou significantes, de acordo com Lacan) em conjunto com algo da ordem deste primitivo infantil. Em Os chistes e sua relação com o inconsciente, Freud nos diz:
Pois o infantil é a fonte do inconsciente e os processos de pensamento inconscientes são exatamente aqueles produzidos na tenra infância. O pensamento que, com a intenção de construir um chiste, mergulha no inconsciente está procurando lá a antiga pátria de seu primitivo jogo com as palavras (FREUD, 1905, p. 160).
Já em relação ao inconsciente lacaniano, de acordo com Dosse (1966/1993), o que ocorre é uma apropriação do inconsciente antropológico de Lévi-Strauss por parte de Lacan e, a partir disso, grandes modificações e diferenças em relação ao inconsciente freudiano estarão presentes. Este é um dos pontos que marcam a passagem do inconsciente como imaginário para o inconsciente estruturado como uma linguagem. Sobre essas dicotomias, Dosse (1966/1993) diz:
O inconsciente é definido por sua função de troca, é o termo mediador entre o eu e o outro e não o jardim secreto do sujeito. [...] Esse inconsciente puramente formal, lugar vazio, puro receptáculo, está bem longe do inconsciente freudiano, definido por um certo número de conteúdos privilegiados (DOSSE, 1993, p. 140).
No entanto, vale notar que embora o olhar de Freud às vezes se deixasse fascinar pelo trabalho com o que Lacan chama de inconsciente imaginário, o próprio Lacan irá nos apontar que já em Freud observamos certas indicações para um inconsciente que não se sustenta somente pelo campo das representações. Podemos esclarecer com a seguinte citação retirada do Seminário 11, na qual Lacan aponta que:
O inconsciente de Freud não é de modo algum o inconsciente romântico da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da noite. Sem dúvida que isto não deixa totalmente de ter relação com o lugar para onde se volta o olhar de Freud – mas o fato de Jung, relé dos termos inconsciente romântico, ter sido repudiado por Freud, nos indica bastante que a psicanálise introduz outra coisa (LACAN, 1964, p. 29).
Ao pensarmos na releitura e novas proposições que Lacan faz à descoberta freudiana do inconsciente, Bastos (2006) aponta que este será caracterizado como um saber que não pode ser apreendido ativamente pela pessoa e se faz presente como algo desconhecido. Em outras palavras, é algo que surge como um saber que a pessoa não sabia que sabia – o que, muitas vezes ao ser encontrado na clínica (pelo próprio cliente, claro) pode causar certo espanto ou susto[1]. Este saber se relaciona com as conexões significantes e possui a característica de uma pulsação temporal que é enfatizada durante a experiência analítica em que há transferência. A partir disso observa-se a importância, em certo momento da análise, que o sujeito suponha haver um saber no campo do Outro para que, assim, seja possível o analista apontar as produções inconscientes que o próprio sujeito realiza durante sua enunciação e articulações significantes.
Em relação ao campo do Outro e o momento de análise, Fink (1998) irá corroborar com a ideia de Bastos ao dizer que o analisante, no início do tratamento, coloca o analista em uma posição de grande Outro e direciona a ele suas demandas, como por exemplo de saber, ajuda, reconhecimento e aprovação. O autor aponta que Lacan resume todas essas demandas em uma demanda de amor. No entanto, o analista não deve se apoderar desse lugar de suposto saber que o analisante lhe coloca pois isso não teria nenhum efeito benéfico aos analisantes, além de propiciar uma dependência e mantê-los em uma relação de alienação. Nesse sentido, cabe ao analista “tomar o inconsciente do analisando como o representante do saber” (FINK, 1998, p. 114). É preciso, então, que o analista abandone o lugar de grande Outro para que o analisante se desprenda da demanda e comece a se dar conta do circuito de seu próprio desejo, produzindo assim novos saberes. Ainda sobre o Outro, Dosse nos diz que em Lacan este conceito corresponde a uma “reflexão sobre a alteridade, sobre o que escapa à razão, sobre o lugar da falta, sobre a descentração do desejo, sobre sua errância” (DOSSE, 1993, p. 144). Nesse sentido, “a presença do inconsciente, por se situar no lugar do Outro, deve ser procurada, em todo discurso, na sua enunciação” (LACAN, 1998, p. 848).
Sobre essa articulação da linguagem, Dor (2008, p. 118) afirma que o inconsciente emerge no dizer, já que no dito “a verdade do sujeito se perde” e aparece apenas uma “máscara do sujeito do enunciado”. É preciso, assim, se fazer ouvir por meio do dizer. O analista fará pontuações no dizer para que, na enunciação, ocorram aberturas significantes que deve-se fazer ouvi-las. A escuta do analista deve então se direcionar àquilo que está para além do que é dito, onde são apontados significantes que se diferem do discurso que já está organizado em certos significados. É nesse sentido que o autor traz o ponto de vista de Lacan sobre a prática da atenção flutuante, já que ela se relaciona com as oposições de enunciado e enunciação que atualizam a estrutura de divisão do sujeito.
Para esclarecer as dicotomias entre enunciado e enunciação, Bastos (2006) realiza uma breve analogia dizendo que são como um objeto fabricado e sua fabricação. Nesse sentido, a enunciação como ato de discurso realizado por um sujeito falante, produz o enunciado como resultado desse ato. É possível observar que, dessa maneira, o sujeito do enunciado é localizado por meio dos pronomes pessoais situados no próprio enunciado, enquanto que o da enunciação é aquele que possui uma participação subjetiva no ato de proferir o discurso e que não necessariamente se localiza como sujeito do enunciado.
Dor (1989/2008), então, apresenta uma questão decorrente desta discussão acerca da atenção flutuante e, em seguida, o que Lacan propõe para responde-las. Trata-se do seguinte questionamento: a partir de quais elementos específicos o analista fará sua intervenção se não há nenhum material que é privilegiado a priori? Em seguida o autor diz:
[...] na medida em que o inconsciente emerge no discurso do sujeito pelo processo de enunciação, a atenção flutuante aparece sobretudo ao nível do enunciado e de seu sujeito. A acuidade da escuta será, em contrapartida, dirigida ao registro do dizer. [...] trata-se sobretudo de estar receptivo aos significantes que advêm, através do dizer, para além dos significados que se organizam no dito. A conveniência da intervenção é assim governada pelo rastreamento desses efeitos significantes, e o lugar da intervenção fica circunscrito à ordem do significante (DOR, 1989/2008, p. 119-120).
Dor (1989/2008) ainda fala sobre aquilo que Lacan denomina de linguagem primeira, como linguagem do sujeito do desejo que está para além daquilo que ele diz de si. Assim, em relação à intervenção do analista e esse tipo de linguagem, o autor irá dizer:
A intervenção analítica tem, assim, o status de uma operação de linguagem que se produz sob a forma de um corte significante na ordem do dito, para liberar a “linguagem primeira” do desejo inconsciente que se articula no dizer (DOR, 2008, p. 120).
De acordo com Dosse (1993), neste inconsciente lacaniano que emerge no dizer há certo parentesco com a função simbólica em suas características de leis estruturais. Assim, podemos retomar o que dizemos no primeiro capítulo e citar, nesse momento do ensino de Lacan, a predominância, autonomia e polaridade em relação ao campo simbólico devido às apropriações e modificações que o autor faz nas obras de Lévi-Strauss e Ferdinand de Saussure. Nesse sentido, Lacan apresenta uma álgebra significante onde há o domínio do significante sobre o significado e a precedência desse primeiro como necessária para determinar o segundo.
Dosse (1993) complementa dizendo que esse campo simbólico em que Lacan sustenta sua noção de inconsciente possui, neste momento, a característica de exterioridade ao sujeito e também função de troca. Podemos notar isso em uma cadeia simbólica que é aprisionada ao sujeito mesmo antes de seu nascimento e até após de sua morte, ou seja, na relação do sujeito com o grande Outro.
Sobre o inconsciente estruturado como uma linguagem, Dosse (1993) diz que Lacan apresenta a cadeia significante como aquilo que rege a ordem do significado e, no trabalho de análise, é preciso que o analista “tome o paciente à letra e não insira o seu dizer em nenhuma hermenêutica” (DOSSE, 1993, p. 134). Sobre esse trabalho de análise, podemos acrescentar algo que Miller (1987) descreve a respeito da maneira com que o analisante apresenta o seu dizer, não necessitando de nenhuma concentração ou reflexão prévia ao ato de dizer, mas sim, associando livremente.
Enquanto nas experiências antigas – as que buscam o conhecimento, de meditação, um convite a entrar dentro de si mesmo, purificar-se, não encontramos nada disso na experiência analítica. Se ela promete a verdade acerca de seu desejo, é em um contexto que não implica qualquer desses aspectos de purificação, de concentração. Pelo contrário, é uma cerimônia, um ritual, porém fixo [...] ao invés de o sujeito ter que se concentrar previamente, deve, pelo contrário, entregar o material sem preparação alguma (MILLER, 1987, p. 78)
Nota-se uma clara contraposição entre o método de associação livre utilizado na psicanálise e outras experiências que buscariam algo do sujeito por meio de meditações ou uma concentração em si mesmo. Observamos que a partir da associação livre do cliente, em que há uma fala sem restrições, o analista deve tomar a literalidade dessa fala por meio da atenção flutuante, já que, é nesse mesmo dizer onde se fará presente a cadeia significante, qual sustenta o advir do inconsciente. É na própria ruptura da cadeia que o inconsciente irá advir; na falha em seus ditos que muitos analisantes não se dão conta e que o analista estará lá para pontuá-las.
Podemos dizer então que durante a associação livre do cliente o analista irá notar as contradições e as hiâncias da cadeia significante cuja a atenção flutuante é capturada se o analista estiver ao sabor das palavras do cliente. Dessa maneira, algo a respeito da verdade do desejo do cliente irá se apresentar para que o analista interprete e pontue, fazendo com que este algo seja percebido pelo próprio cliente. Vale notar que ao decorrer da análise muitas vezes o cliente torna-se capaz de questionar suas próprias aberturas inconscientes, como, por exemplo, em um ato falho.
Complementando sobre a associação livre e rememoração, Bastos (2006) aponta que o sujeito pode apresentar uma resistência observada como repetição em ato aquilo que não pode ser significado. Ou seja, há um limite para a rememoração que está para além da rede de significantes. Esse limite é o que podemos chamar de real. O autor diz:
O não representável do real acarreta a repetição, levando o sujeito a estar sempre retornando ao lugar do objeto perdido, de uma satisfação que está para sempre perdida. O sujeito está repetidamente voltando a esse lugar de ausência, numa tentativa de conseguir um encontro com a Coisa real, que fora para sempre perdida (BASTOS, 2006, p. 61).
Bastos (2006) nos lembra que Lacan apropria-se de dois termos utilizados por Aristóteles para remeter-nos à questão da rememoração e seu limite, em que, é utilizado o termo Autômaton para dizer das cadeias significantes rememoradas e a Tiquê para o momento de encontro com o real onde o que não possui sentido aparece. O autor afirma que já no trabalho de Freud com as histéricas a repetição estava presente, e que, Lacan irá propô-la não como uma reprodução, mas sim, como algo da ordem do real.
Milner (2010) aponta que, para compreender a relação da língua com a psicanálise, é interessante pensar nas obras literárias ou de arte. De acordo com o autor, Freud e Lacan concordam que o psicanalista não deve interpretar, por exemplo, Shakespeare, e sim aceitar que Shakespeare interpreta. É nesse sentido que a atitude do analista “consiste somente em ouvir e a fazer ouvir essa interpretação” (MILNER, 2010, p. 5) que o próprio analisante realiza, já que, também pode acontecer da língua em si mesma interpretar o sujeito falante. Para Milner (2010), essa interpretação é a que usualmente se desdobra no detalhe, na emergência do sujeito. O autor descreve que a temporalidade dessa emergência é o instante e sua espacialidade é o ponto. Diz, ainda, que se a obra de arte ou a língua interpretam, é “por algum detalhe isolável e particular” (MILNER, 2010, p. 5).
Observa-se como é extensa a rede de associações possíveis entre conceitos teóricos e, mais do que isso, entre a teoria psicanalítica e a prática com o sujeito que nos oferece sempre algo da ordem do desconhecido e particular em nosso trabalho, já que, em cada caso, deparamo-nos com uma história, fantasia, posição subjetiva e modos de se relacionar com a cadeia significante diferentes. É preciso, assim, atentar-nos à teoria que sustenta nossa prática para que possamos realizar um trabalho ético com esse sujeito. Além disso, reconhecer os impasses e limites de nossa epistemologia para que, frente a eles, continuemos produzindo um conhecimento que pode ser de abundante utilidade em nossa prática profissional. Como nos diz Carvalho:
Trabalhando com cada ente humano no que lhe é particular (sua estrutura psíquica, seu modo de gozo neurótico, psicótico ou perverso) e incluindo em sua práxis, o vazio do não saber (requisito dos procedimentos de verdade), a Psicanálise aponta para cada um, a cada análise, uma verdade. O que se espera ao final de um processo analítico é que o analisando reconheça e decida sobre o que nele há de único e paradoxal. Reconheça o que há, mais além de sua estrutura, e que consiste em seu modo inconsciente e singular de desejar e gozar em sua vida (CARVALHO, p. 982, 2014).
[1] Nesse sentido lembramos do neologismo criado por Lacan, o aturdito.
BASTOS, Claudio Rosa. O sujeito no primeiro ensino de Lacan: Lacan e o descentramento do cogito cartesiano. 2006. Dissertação de Mestrado - PUC Minas. Belo Horizonte, p. 51-75.
CARVALHO, Wanderley M. de. Da Psicanálise como uma ciência particular do singular. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 14, n. 3, p. 967-986, dez. 2014.
DOR, Joel. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre, Artmed. (Original publicado em 1989), 2008.
DOSSE, F. História do estruturalismo I. O campo do signo, 1966. São Paulo: Editora da Unicamp; SP: Editora Ensaio, 1993.
FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. Carta 52 (1896). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume I, Imago Editora, 1996.
FREUD, Sigmund. Os Chistes e a sua Relação com o Inconsciente (1905). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume VIII, Imago Editora, 1996.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente, 1957-58. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (1999).
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (2008).
MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução. Zahar, 1987.
MILNER, Jean-Claude. Linguística e psicanálise. Estudos Lacanianos, v. 3, n. 4, 2010.
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